top of page

 

(...)a tela em si é mais que o repositório de todas as vivências e experiências, ou das camadas de tintas na diluição das cores. A tela é espelho, mas também portal, que pelo ato e processo da pintura me fazem divagar pelo desconhecido.

(SPERB,Gisele Teixeira Sperb. A epifania no processo criativo - quando o tempo é outro. Porto Alegre. Casaletras, 2020.

 

A terceira margem, 2023

Experiências, fantasias e signos coexistem materializados na tela por meio de pinceladas expressivas, as quais podem provocar um diálogo entre a artista, a obra e o observador. Assim foi o processo criativo na obra A terceira margem, 2023, título que escolhi para o desafio proposto pelo psicanalista Filipe Vieira. Nos seus escritos, @filipepv vislumbra pontes na distinção, algo com o qual me identifico em relação ao que poderia ser o mundo, com infinitas possibilidades, e não apenas definido por dualidades. A obra está carregada de referências da psicanálise e da arte, e está em exposição até março de 2024, no @espacoattento

 

O céu era azul e laranja – autorretrato com Winnicot, 2023

Na obra o céu era azul e laranja – autorretrato com Winnicott falo de questões profundas, de podermos ser quem somos, apenas ser, e penso que ser não é algo estagnado, é transformação. A incerteza, a instabilidade, a inconstância também somos nós, e o azul e o laranja nos diz tanto sobre isso...

As figuras sem contorno materializadas através das pinceladas expressivas e palavras aleatórias, e as questões surgidas na minha análise conversavam entre si, como um devir.

Autorretrato, 2017
Instalação  (proposta sensitiva)
Gelo, smartphone, fio de nylon
Ano/Local: 
2017: Centro de Artes UFPel, Pelotas
2024: @espacoattento 
Segue lá!! 
Nova data: 24/02/2024 “Attento Day”

A escolha da instalação, a imersão de um smartphone em um cubo de gelo, como meio de expressão foi um desdobramento na rede de criação iniciada a partir de uma selfie no espelho, cuja imagem me causou estranhamento e desconforto. A materialidade do gelo me pareceu dar conta do que eu queria compartilhar, pois creio que o gelo sugere solidez e fragilidade, podendo nos levar à percepção da transitoriedade e da nossa incapacidade de congelar o tempo fugaz, que “escorre” diante nós. 
A apresentação deste trabalho no Espaço Attento é de extrema relevância, especialmente após a tempestade na capital gaúcha, que privou os moradores de energia elétrica por dias. Em um shopping próximo a minha casa, se formavam fileiras de pessoas para recarregar seus smartphones, tablets e notebooks, já que esse possui gerador de energia elétrica. Naquele momento, percebi estas pessoas agoniadas, irreconhecíveis, o que me remeteu à instalação que realizei em 2017 em Pelotas.
Decidi, assim, realizá-la novamente.

O outro impregnado de nós - Retratos 

A exposição “O outro impregnado de nós – Retratos”, esteve  na Galeria Casa Morada, participante do Projeto Portas para a arte da 13 BIENAL DO MERCOSUL,  no bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre, no período de 04 de agosto a 04 de novembro de 2022.

A exposição:

Retratos de si, do outro, de nós. É possível estarmos contidos nas cores que parecem pulsar diante de nós? O olhar olhando de dentro parece exercer uma magia, intima o olhar olhando de fora, como se uma alma tivesse. Seria a alma do retratado ou a alma do artista, ou ainda, seria a alma do observador que reflete no quadro? A tela se faz portal, mas também se faz espelho, o que denuncia a amálgama temporal em que a artista visita em seu processo criativo.

Uma série de retratos  de Freud e de seus seguidores, de amigos da artista, de familiares e autorretratos, sendo um deles inspirado em um sonho de infância, além de uma instalação/proposta sensitiva, uma sala que nos levava a um lugar desconhecido — talvez, para dentro de nós mesmos, compuseram a mostra. A busca por imagens do Pai da Psicanálise surgiu no momento em que a artista percebeu, durante seu processo criativo, que seus trabalhos a levavam cada vez mais para o seu “primitivo, o dentro”, além de Freud ter sido a base do Expressionismo Alemão, o qual dialogava com o Fauvismo, que é referência no fazer da artista.

 

Retrato de Seu Humberto Fossa

Acrílica sobre papel de algodão

42 x 29, 7 cm

Essa mescla de tempos que se emaranha na minha memória,

Brinca comigo, faz-me sentir criança outra vez enquanto as cores tomam o espaço.

Olho para a fotografia de um homem com cabelos brancos que denunciam a passagem do tempo,

No entanto, é o Seu Humberto da Casa Rio e do Cine-Teatro Glória que surge de uma lembrança vívida na imagem que insisto em representar agora.

Era início dos anos 1970, certa vez que fui na Casa Rio, comprei lápis de cor, guache, caderno de desenho e “Viagem ao Centro da Terra”. Do jeito quieto dele, porém gentil, Seu Humberto examinou o livro como a examinar uma jóia, e disse:

“Vais gostar, é um livro fantástico.”

É sabido que ele era um pesquisador apaixonado, seu acervo é fonte e é portal, faz-me mergulhar e adentrar minhas memórias que se entrelaçam com as de outros . “Viagem ao Centro da Terra é um livro fantástico”, disse ele, talvez por desejar que as crianças sonhassem e fossem atrás de seus sonhos, como ele o fez. Homem culto e comprometido em manter viva a história da nossa terra, a exemplo disso, ajudou o Seu Firmino a reerguer o “Bumba-meu-boi de Encruzilhada”, festa realizada até os dias de hoje.

Tenho dito que a pintura é um dos meus jeitos de falar, afinal as palavras já foram tão bem costuradas no “Memória Encruzilhadense”, coleção literária organizada pelas conterrâneas e saudosas Alice T. Campos Moreira e Dione Teixeira Borges Moreira, em cujas páginas são compartilhados fragmentos de um trabalho realizado durante décadas pelo homem que sonhava uma Encruzilhada eternizada. E com sucesso ele conseguiu, instigou no coração de crianças e jovens a curiosidade e o desejo de manter viva a história da nossa aldeia.

 

Dona Maria Lima Mota, 2021

Retrato de Julieta

Acrílica sobre papel de algodão

30 x 21 cm

“O jardim é o universo da pessoa e tudo que tá em volta dela”

Assim abriu o baralho manuseado com agilidade. A energia fluida, desde o embaralhar das cartas, tomava todo espaço adornado com seus santos protetores. Sua respiração era o único som que se podia ouvir, ali a atmosfera era densa, era como se o tempo houvesse parado. A fumaça do incenso formava um véu para onde quer que se olhasse; o cheiro de ervas queimando, a luz das velas e, então começava a interpretação do meu destino através do dom e sabedoria de Dona Maria.

Coisas eram ditas, as quais naquele momento não faziam sentido pra mim. No entanto, no transcorrer da vida, tudo se solidava... Como pode? De onde vem esse poder de ler o universo, eu me perguntava, eu e tantas outras pessoas.

Ela mantinha o centro de umbanda com a ajuda de quem estendesse a mão. Lá,  as crianças eram benzidas, junto às oferendas no altar aos guias protetores. Em fevereiro saía em uma caravana aos festejos de Iemanjá. Seu cavalo recebia o Cacique Cobra Coral, protetor das matas e da terra onde pisamos...

A pergunta se mantém: de onde vem essa energia que acalma no desespero de um infortúnio? Não sei dizer, mas ainda hoje, ao lembrar as palavras da benzedeira da Benjamin Constant,  meu coração se acalma e não me sinto só.

 

ALMAS DAS RUAS (série)

Memórias distantes de agora, mas vivas em mim e na comunidade onde nasci, Encruzilhada do Sul, uma pequena cidade de aproximadamente 25 mil habitantes. Ao meu ver, suas ruas tinham almas, e são estas que me interessam. Tio Nabuco, "o vendedor de sonhos" da Dona Malvina; Tia Pretinha, “a benzedeira” e amante do carnaval; Seu Florindo, “o carteiro”, homem sério, sabia que carregava tesouros na sua pasta; Zé da pipa, “o pipeiro”, entregava água aos lares que não possuiam água encanada, são figuras carismáticas da cidade onde nasci, vivas na memória dos encruzilhadenses e, agora eternizadas em pinturas. 

O vendedor de sonhos, 2021

Acrílica sobre papel de algodão

30 x 21 cm

Sobre pintura, minhas escolhas partem das minhas experiências, ora como denúncias, ora como compartilhamento de memórias distantes de agora, mas vivas em mim e na comunidade onde nasci, Encruzilhada do Sul, uma pequena cidade de aproximadamente 25 mil habitantes. Ao meu ver, suas ruas tinham almas, e são estas que me interessam. Tio Nabuco é uma delas, o vendedor de sonhos (Da Vó Malvina) também anunciava a programação do Cine Glória e a partida dos seus conterrâneos. Ia de esquina em esquina chamando a população para a despedida de alguém. Sim, falo da morte, mas não parecia assustadora anunciada por ele, talvez pela doçura e respeito com que exercia o seu ofício.

 A benzedeira II, 2021

Retrato de Tia Pretinha

Acrílica sobre papel de algodão

30 x 21 cm
"Mau-olhado", de "rendedura" a dor de amor, curava o "cavalo" e limpava a alma, abria os caminhos.
Três sextas-feiras, carvão em brasa, um copo d’água, a tesoura e a fé, instrumentos de trabalho. Se o carvão em brasa afundasse e a água turva ficasse, era mau-olhado, mas quem a procurava sabia que na última sexta, o carvão flutuaria em água límpida, e o mau-olhado estaria cortado.
Além de abrir caminhos, Tia Pretinha abria o carnaval nas ruas de Encruzilhada.
Com os passos já lentos, seu corpo frágil era levado pelo seu espírito guerreiro, ao som do batuque pelas ruas da cidade.
Oh abre alas que ela quer passar...

O carteiro, 2021

(Retrato de Seu Florindo)

Acrílica sobre papel de algodão

30 x 21 cm

O nome da rua, o nome da gente, quem mais saberia de cor? Em um tempo em que se ouvia falar “extraviou-se uma carta”, lá em Encruzilhada do Sul não acontecia, Seu Florindo com zelo e seriedade fazia a carta chegar ao seu destino, fosse notícia de morte, fosse notícia de vida, também tinha carta de amor e contas a pagar, às vezes aviso de conta vencida...

A rua passava a ter vida à medida que suas almas transitavam, era assim na minha cidade. As ruas de pedra ou de chão batido eram visitadas pelo carteiro Florindo, sua postura e passos firmes denunciavam que ele sabia a importância do seu ofício, orgulhava-se. Da Vila Mariano da Rocha ao Lava-pés, a caminhada era longa, a responsabilidade era grande, carregava consigo tesouros. Sua mala não tinha chave, mas era muito bem cuidada, afinal guardava os segredos da cidade, até cartas de amores proibidos. Lá vem o Seu Florindo, diziam alguns ansiosos para receber as palavras guardadas em um envelope selado. E por falar em selos... a criançada o atormentava! eu era uma delas.

- Seu Florindo tem um selo para me dar?

- Não crianças, vão brincar!

O Pipeiro, 2021

Retrato de Zé da Pipa

Acrílica sobre papel de algodão

21 x 30 cm

Era noite ainda, descansava seu corpo magro no Lava-pés, bairro onde morava.

Ainda nem amanhecia quando subia a ladeira com sua pipa sobre rodas,

Ainda vazia...

Pipa que também era banco,

Seguiam, levados pelo seu cavalo companheiro, ele e a pipa.

Ainda vazia...

Zé da Pipa atravessava a cidade, atravessava os tempos, fazia isso nos anos 50.

Mas já eram os anos 60 e ele seguia.

Descia a ladeira, avistava a fonte do Pedroso, enchia a pipa.

Calma, gente! A pipa era grande! Eram 200 litros de água límpida para serem distribuídos.

Homem sério, meio sisudo, mas gentil.

Transitava pelas ruas de Encruzilhada...

Levando às casas, àquelas que ainda não tinham água encanada, a preciosa vida.

Dá uma lata d’água aí, Zé?

O mestre guia, 2021

Retrato de Seu Firmino

Acrílica sobre papel de algodão

21 x 30 cm

Por muito tempo a família Mota cuidava do boi, lá no bairro Lava-Pés.

Não se sabe bem a razão do sono profundo que abateu o boi por longos anos,

Até que nos anos 60, ele foi acordado no quintal do seu Firmino,

Ali na 4 de dezembro, em frente ao Clube Tabajara.

Era uma tarde quente de verão, primeiro sábado depois do carnaval.

Pra quem pensa que não faz calor na serra do sudeste, enganado está.

Encruzilhada com invernos de “renguear cusco”, também surpreendia com verões de queimar o “coco”. Mas porque falar do clima da nossa terra?

É simples, seu Firmino, nessa tarde quente, nos anos 60, viu a “gurizada” carregada de preguiça,

Pelo tamanho calor que fazia... sem ânimo para brincar, como assim? Isso não podia!

Lembrando de sua infância correndo atrás do bumba-meu-boi, falou para os seus queridos:

— Vamos fazer uma brincadeira...vamos fazer um boizinho. Vamos ver no que dá...

Logo a “ossada feia” ganhou fitas e guizos nos chifres, e com uma roupa colorida avançou pela 4 de dezembro fazendo pipocar criança de todos os lados.

O boi ressuscitou junto a suas almas dantes vividas, e as crianças também, a alegria voltou.

Enchia a rua de bandeiras e a festa foi ficando grande, então seu amigo Humberto disse:

— Peraí, que vou te ajudar!

O mestre e o amigo fizeram acontecer a farra todo primeiro sábado depois do carnaval, saía lá do quintal do seu Firmino. A criançada acompanhava pela rua, gente grande também. E tinha gaitas, tambores, música! Seu Firmino era o maestro do boi que desmaiava durante o percurso, mas era animado com uma agulhada do Seu Veterinário, e logo retomava a folia pra alegria de Encruzilhada.

A gente sabe que os cincerros de bronze são pra guiar quem vem atrás, mas não se engane, quem guiava era o seu Firmino, e o boi contrariado, obedecia.

— Levanta, boi!

E o boi seguia...

era uma farra por todas as ruas, levando toda a gente até a praça central, 

onde a festa se estenderia....

O Fazedor de ruas, 2021

Retrato de seu Oswaldo

Acrílica sobre papel de algodão

30 x 21 cm

Era assim:

Chovia a cântaros e logo a Ramiro Barcelos se transformava...

Aliás, como tantas outras ruas que ainda não eram calçadas.

O chão batido ficava cheio de buracos, parecia até queijo suíço.

Mas logo seria nivelado — pelo fazedor de ruas.

Ele morava logo ali,

Na Travessa da Ramiro.

Seu Osvaldo, homem quieto e tranquilo, com seu uniforme azul contrastava dentro da patrola laranja.

Eu nem sabia que eram cores complementares naquela época,

Mas já sabia que a patrola só era completa com o seu Osvaldo.

Devagar, a lâmina gravava uma rua lisa, formada entre duas montanhas de terra.

Zeloso, o fazedor de ruas dizia:

— Fiquem na calçada, crianças!

Mas ninguém ouvia...

Sinto o perfume da terra virada, irrompe minha memória, antes esquecida.

Me vejo ali,

Ramiro, entre a Barão do Amazonas e a “Pracinha”,

Era este o trajeto que eu podia fazer de bicicleta — eu e mais uma turma de crianças.

A calmaria da rua era substituída pelos burburinhos que surgiam por todos os lados,

Nandas, Aninhas, Serginhos, Elisetes, Pedras, Antoninhas, Periazinhos, Paulinhos Afonsos, Wilmas, Nidas, Anas Delfinas, Lecas, Xandis, Lises, Claudinhos, Ciros, Lélis, Narinhas, Zelinhas...

Apelidos ou nomes, iguais ou diferentes, só mudavam as ruas.

A cena se repetia por todas os caminhos de chão batido da minha cidade.

Tão logo seu Osvaldo acenava e a patrola sumia,

Voávamos pela recém feita, então perfeita, rua — um presente do nosso fazedor de ruas.

A lavadeira, 2021 

Retrato de Dona Conceição

30 x 21 cm

Acrílica sobre papel de algodão.

Eram os anos 60…

Dona Conceição, senhora muito séria e devota de Santa Luzia, fazia doces. Tinha fila para encomenda. Nem bem entrava dezembro e a gente já pedia:

­— Quero bolo da Dona Conceição no Natal!

O que recebia se somava com os ganhos do seu Lauro, seu esposo, para o sustento dos sete filhos:

Elisinha, filha de coração, José Eli, Laura, Luzia, Leila, Lires e Cambão.

Já era difícil assim, e ficou ainda mais.

Seu Lauro se foi.

Engolia o próprio choro  e secava as lágrimas de suas crianças até que adormecessem.

Na noite escura, o arroio que passava no seu quintal a clamava com o burburinho da correnteza, era quase uma canção de lamento…

Mas Santa Luzia abriu seus olhos. A mulher que já era forte ganhou mais força no infortúnio, viu na correnteza um instrumento de trabalho, “a lavadeira” se apresentou às casas de família.

À beira do arroio, amarrava a saia com um nó até os joelhos, adentrava a água, enchia a tina,

Diluía o anil, ensaboava, torcia, “quarava” ao sol para alvejar. Enxaguava, torcia, ensaboava, batia, enxaguava, torcia, enxaguava, torcia. Esvoaçava no varal. Logo logo, os colarinhos e punhos eram engomados e a roupa passada.

E quando o frio chegava na serra do sudeste, quando pairavam camadas de geada congelada sobre o arroio, dificultando o seu trabalho? Ora… Destemida, ela golpeava o gelo na busca da água, pois tinha obrigações com a freguesia.

E rumo à entrega. Saía do Lava-pés com a trouxa na cabeça, subia a ladeira, mais uma ladeira, àquela da Casa Rio, entrega feita.

Na volta à casa não retornava de mãos vazias, fazia uma parada no armazém do Seu João Grosso. Dos ganhos, abastecia as latas, e logo outra trouxa desfazia.

A gente toda foi falando da roupa alva lavada e engomada com esmero, a freguesia só aumentava.

Deixava à filha Luzia os ensinamentos e segredos dos seus doces, e nossa terra herdava mais uma doceira de mão cheia.

E assim, “a lavadeira” seguia, equilibrando a vida e a trouxa pelas ruas de Encruzilhada.

 

O jardineiro, 2021

Retrato de Tio Chico

Acrílica sobre papel de algodão

30 x 21 cm

Era cedo ainda, as aulas começavam às sete e meia.

Havia dias que só se ouvia o tac tac da tesoura de poda.

E quando passávamos na Praça Júlio de Castilhos no caminho para a escola…

De repente ouvíamos:

– Bom dia, meninas!

Surgia em meio aos ciprestes o Tio Chico,

Homem simples e gentil, saiu do campo para morar na cidade, ali na 4 de dezembro.  Muito cedo assumiu seu posto como jardineiro da praça. Era casado com a Dona Oraci, tinham sete filhos:

Teresinha, Rogério, Vera, Ronaldo, Gerlane, Clóvis e Marilza.

Eram adoráveis as esculturas que “o jardineiro” criava. Fazia da praça uma mostra de arte — topiário de mão cheia, brincava com as palavras e as formas, de dar inveja aos jardins de Versailles.

Os caminhos entre as esculturas eram brilhantes, pedrinhas minúsculas refletiam infinitas cores, tinha um quê de magia aquela praça. Na primavera, as rosas e os junquilhos se uniam ao aroma indescritível dos jasmins. Antes mesmo de adentrarmos a praça, o perfume invadia meus sentidos, e permanece até hoje como um portal na minha memória cada vez que me aproximo dessa flor.

Os jardins da Praça Júlio de Castilhos eram frequentados por famílias inteiras, enamorados, almas solitárias, trabalhadores e estudantes — aliás, muitas figuras solenes cruzavam a praça no cumprimento de seus ofícios ou simplesmente para um dedo de prosa com o Tio Chico. Vez ou outra lá estavam o Tio Nabuco, a Tia Pretinha, o Seu Florindo, o Zé da Pipa, o Seu Osvaldo, o Seu Firmino, a Dona Conceição.

Sei que a praça continua aos cuidados de outras pessoas, filhos dos filhos, outros jardineiros, da terra ou forasteiros, que já ouviram sobre as esculturas ou as conheceram enquanto cresciam…

Sei também que a vida é assim, um ciclo permanente, infindável. Mas também sei que existem pessoas que marcam a vida da gente para sempre — são almas que atravessam os tempos. E basta que eu cerre meus olhos e visite minhas lembranças para que possa ouvir o tac tac da tesoura e aquele carinhoso “Bom dia, menina!”

E então, ainda que tomada de saudade, sorrio — por vezes com os olhos, por vezes com a boca.

Dona Maria Lima Mota, 2021

Retrato de Julieta

Acrílica sobre papel de algodão

30 x 21 cm

“O jardim é o universo da pessoa e tudo que tá em volta dela”

Assim abriu o baralho manuseado com agilidade. A energia fluida, desde o embaralhar das cartas, tomava todo espaço adornado com seus santos protetores. Sua respiração era o único som que se podia ouvir, ali a atmosfera era densa, era como se o tempo houvesse parado. A fumaça do incenso formava um véu para onde quer que se olhasse; o cheiro de ervas queimando, a luz das velas e, então começava a interpretação do meu destino através do dom e sabedoria de Dona Maria.

Coisas eram ditas, as quais naquele momento não faziam sentido pra mim. No entanto, no transcorrer da vida, tudo se solidava... Como pode? De onde vem esse poder de ler o universo, eu me perguntava, eu e tantas outras pessoas.

Ela mantinha o centro de umbanda com a ajuda de quem estendesse a mão. Lá,  as crianças eram benzidas, junto às oferendas no altar aos guias protetores. Em fevereiro saía em uma caravana aos festejos de Iemanjá. Seu cavalo recebia o Cacique Cobra Coral, protetor das matas e da terra onde pisamos...

A pergunta se mantém: de onde vem essa energia que acalma no desespero de um infortúnio? Não sei dizer, mas ainda hoje, ao lembrar as palavras da benzedeira da Benjamin Constant,  meu coração se acalma e não me sinto só.

Orchidarium, 2020

Acrílica sobre papel de algodão

30 x 21 cm

Quisera o homem fosse forte como as orquídeas

Quisera...

Os sorrisos e os sonhos estonteantes se esvaem e não voltam

às vezes por nada, às vezes por um nada que parece tudo.

E tudo desaparece, deixando a dúvida se sequer existiu.

 

 

 

The magic, 2020

Acrílica sobre papel de algodão

30 x 21 cm

Tem gente que fica na vida da gente...

Um gesto, uma palavra que muda tudo

Faz levar um pouco de si para todo o sempre

Simples assim...

 

 

 

Little fortress, 2020

Acrílica sobre tela

45 x 45 cm

Há quem não compreenda

este instante que o homem percebe

o tanto que tem a aprender,

como o mundo pode caber em um abraço?

 

 

The blue haired girl, 2020

Acrílica sobre tela

37 x 43 cm

A primeira vez que a vi

Parecia um passarinho assustado,

Seus cabelos azuis

Eram as suas asas...

Coisas de dentro, 2018 - 2017  (série)

Mais uma vez, meu olho vê de fora o olho olhando de dentro.
Quem és, quem sou?
Assemelha-se a mim, desconheço a ti.
Transforma-se diante de mim, deixando o olho que olhava perdido em um não-momento.
Já não encontro a mim e nem a ti, mas um outro, mescla de nós.

 

 

Sem título, 2018.

Acrílica sobre tela.

108,4 x 80 cm

Há muito convivo com a dúvida

Não luto mais com ela.

Já conheço os danos

Não consigo evitar.

As coisas e espaços tendem a se misturar mais vezes por dia

Tentei mapeá-los em cor, até criei limites com a cor.

 

Portal, 2018.

Óleo sobre tela. 

79 x 100 cm.

 

Mas a mancha volta impregna tudo a minha volta.

Retomo e assumo então o meu olhar .

Adentrei esse portal na busca da suspensão temporal, sem perceber duvidei até da minha própria existência e, afinal, lá no “não-momento”, que eu me encontrei no nada, onde o tempo apenas está, não foi, não é e nem será, deixando apenas índices da minha própria ancestralidade através da cor. Então, finalmente, “descansei confortável no desconforto do universo...”.

 

E. A. P, 2018.

Óleo sobre tela. 107x73,5 cm.

Releitura a partir do conto "O gato preto" de Edgar Allan Poe.

Epifania II, 2018

Dimensão: 120 x 90 cm

Técnica: Fotografia Digital (impressão em vinil)

Vi essa passagem para o céu... Não havia uma escada que me levasse até lá, mas eu queria mergulhar naquele azul intenso, então decidi trazer o céu pra terra.

Epifania, 2015

Instalação

Madeira, espelhos, fio de nylon.

Cerrei meus olhos,

Descansei confortável

No desconforto do Universo...

Flutuei entre as estrelas, àquelas que eu visitava na minha infância,

Me vi poeira cósmica,

Olhei pra mim, não era nada...

sendo nada, fiz o caminho de volta,

e então eu era único, eu era parte de um todo.

- e dentro do céu, no “avesso do céu”?

Novamente eu me vi lá

Faço parte, meu olho vê de fora o olho olhando de dentro...

Meu olho é côncavo ou convexo?

-  depende de onde se vê.

Quem me vê, quem eu vejo?

Como? Não há resposta,

Ou será que, se sou partícula, somos o infinito?

bottom of page